19 de outubro de 2011

MOMENTOS CANON- um simples desabafo..ou dúvidas ideológicas..

Há já muito tempo que várias pessoas me pedem para deixar um registo escrito desta minha experiência profissional em Moçambique. Sempre fico com dificuldades para me sentar e escrever qualquer coisa.. Não por falta de histórias ou de opinião muito própria mas porque não quero correr o risco de desrespeitar as pessoas com quem trabalho, quer sejam colegas directos ou parceiros moçambicanos, e acima de tudo, porque tenho uma obrigação moral e contratual de manter confidencialidades.. whatever that means..


Mas, efectivamente e após mais de 3 anos e meio no Chokwe, envolvida nesta luta global que é o controlo da malária (ou a sua tentativa..), que me sinto cheia, inundada, carregada de tantas mas tantas histórias que me parece que já foi há uma vida que vim para cá e me meti neste mundo da ajuda humanitária e dos doadores internacionais. E daí nasceu esta vontade miudinha crescente de desabafar um pouco..


No mundo de hoje, com troikas, FMI, capitalismo, desigualdades sociais, governos corruptos, escassez de recursos, lobbies económicos, e tantos outros termos que nos causam comichão, parece um pouco disparatado andar a falar de apoio internacional aos países sub-desenvolvidos.. a mim, pelo menos.. parece-me algo desenquadrado. Senão, vejamos:


- a ajuda internacional para projectos como o meu, ou qualquer outro na área da saúde, educação e desenvolvimento, quer seja na ordem de grandeza dos bilhões de dólares (vindos maioritariamente do Tio Sam), dos milhões de euros (vindos desse nosso grande pais que é a UE..) ou dos kg de alimentos e livros doados directamente pelo público, está envolvida numa nuvem de mentira e ilusão que serve apenas 2 propósitos: um, de aliviar as consciências pesadas do mundo ocidental que ao enviar ajuda, acredita piamente que está realmente a contribuir para o desenvolvimento dos países pobres; dois, de manter um sistema devastador e insustentável, que permite a exploração dos recursos naturais destes países e a perpetuação de governos corruptos e das desigualdades económicas, que se vão tornando cada vez mais gigantescas


- desde o boom da ajuda internacional, em qualquer das suas múltiplas formas, na década de 50, vários foram os autores (empresários, políticos, intelectuais, artistas, activistas, trabalhadores de ONG, entre tantos outros) africanos e não só, que expressaram uma opinião com a qual me identifico cada vez mais: o contexto africano, com toda a sua História pré colonial, com toda a sua profunda cicatriz social, política, económica e cultural dos últimos séculos, conjugado com o ciclo vicioso do “dar e pedir” típico das políticas de ajuda humanitária, não vai permitir maior desenvolvimento nem diminuir o número de africanos que vivem em condições deploráveis, independentemente do nível de apoio dado ou emprestado. Sejamos realistas. África não precisa de mais dinheiro. África não precisa de mais “espertos” a tentar adivinhar como melhorar os sistemas de saúde e educação. O que África precisa é de políticas de intervenção directas e eficientes e de sistemas governativos lúcidos que não se deixem enganar pelas promessas vãs de enriquecimento rápido. E para isto, talvez não seja de todo necessária a ajuda do mundo ocidental.. ou corremos o risco de transformar o berço da civilização em mais um escravo do Big Brother.


- nos últimos anos, com a crescente crise financeira mundial e consequentemente, a diminuição do nível de ajuda internacional, tem sido cada vez mais óbvio o elevado grau de dependência dos países sub desenvolvidos. Está patente que os bilhões (não sei se têm noção, mas são mesmos bilhões de dólares, que todos os anos entram nestes países..) de ajudas vindos no passado tiveram o seu impacto positivo. A nível imediato e discutível. De que serve alguém construir unidades sanitárias no meio do mato, se depois não há pessoal qualificado para lá trabalhar e os partos continuam a ser feitos por serventes sem formação adequada? Ou equipar um laboratório de uma destas unidades sanitárias, com aparelhos do melhor se depois não há dinheiro para a energia necessária para o seu funcionamento? E se o painel solar, que a mesma ajuda financiou para garantir o fornecimento contínuo de energia, avariou porque foi indevidamente usado para carregar telemóveis de gente que não tem energia nem água potável em casa? Ou de que serve gastar milhões em medicamentos e testes de diagnóstico se a central encarregue da gestão de stocks nacionais não consegue planificar devidamente o ciclo de aprovisionamento e deixa os artigos, tão em falta no meio mato, expirar o prazo sem sequer sairem do armazém na capital? Toda esta ajuda, que agora e já há algum tempo, começou a ficar comprometida por essas complicações económicas do sistema capitalista ocidental, define claramente o futuro caminho destas nações: caos, pobreza e dependência. Tudo exacerbado a um nível extremo que me causa nauseas e insónias..


- ainda assim, acredito na grande contribuição dos pequenos nadas. Acredito naqueles, que destituídos de grandes ideiais de mudança, dão o verdadeiro sentido ao termo “ajuda ao desenvolvimento”, que negam a pequenez da caridade que tem sido a ajuda humanitária (de que serve um enorme esforço para alimentar uma criança a farinha de milho se ela vai sofrer consequências graves, sociais, intelectuais e psicológicas, no seu futuro, por não ter tido acesso a uma dieta equilibrada, repleta de todos os nutrientes essenciais? Ou se ela vai morrer brevemente porque na sua aldeia acreditam que a malária e o HIV são doenças provocadas por espíritos e não a levam ao hospital?) e que, do nada, do insignificante e do fundo do coração.. Contribuem verdadeiramente para a melhoria de vida das pessoas com quem trabalham, sem ilusões de grandes alterações nacionais ou dos sistemas de saúde e educação


- acredito ainda que cabe aqueles que se movimentam nos meandros da política (cá ou aí), garantir que a ajuda humanitária é muito mais que esta simples caridade que se tem visto. Muito mais que simples transformação de valores para impor a forma de trabalho ocidental. Que a contribuição do povo "civilizado" serve realmente para ajudar ao desenvolvimento dos países pobres, através do acompanhamento constante do uso dessa ajuda, que pode ser feito através de tantos e eficazes métodos, como alguns já demonstraram.


- e acredito também que a maioria dos africanos gostaria de parar de pedir.. de parar de ser explorado, interna e externamente.. de parar de viver na miséria.. de parar de ter estrangeiros a mandar palpites…


E como o título dizia.. há momentos da vida em sofremos abalos fortes nas nossas ideologias.. quando nos deparamos com crianças pequenas, de cabeça pendida, de olhos nervosos e o corpo a ferver.. e nos apercebemos que se calhar, mas talvez com muita probabilidade, o nosso trabalho e toda a ajuda internacional, não vão ser nenhuma variável na equação que dita o fim desta vida…


E pronto..foi só um desabafo em dia de tolerância (o Presidente Samora faleceu nesta data, em 1986, sabiam?! Uma informação gratuita da Blackiepedia em dia de indignações :p)